Blogue do Doce Veneno

Thursday, October 16, 2014

VAMOS MATAR A AMÉLIA (1)

"La Jeune Martyre", 1855 (pormenor), Paul Delaroche, Museu do Louvre.

Estou lixado, lixadíssimo. Digo que não sei porquê para não ter que dizer alguma coisa politicamente incorrecta. Para me vingar vou matar alguém, mesmo que ficticiamente. As personagens das histórias também morrem, às vezes, barbaramente chacinadas pelos autores da ficção.
Vamos lá então retomar e localizar o assunto. Estarão lembrados de um episódio que comecei a efabular no princípio deste blogue. Tratava-se da historieta de um engate mais ou menos conseguido, no tempo em que estive destacado na autarquia.
Parece que uma menina Amélia, da qual quase nada mais sei que o nome, aparecia às vezes para consultar uma obra qualquer na Biblioteca da Gulbenkian.
A bibliotecária, na altura, era, por inerência das funções que eu exercia, obrigada a facultar-me diariamente todos os jornais recebidos, imprensa regional e nacional para eu elaborar uma síntese dos assuntos que interessariam politicamente ou económico-social-culturalmente à autarquia. Era uma mulher muito jovem, sexualmente muito atraente, habituada a usar os seus dotes para progredir na carreira e socialmente e, por isso muito cara para as minhas posses e "influência" local. Começara a sua ascensão "per tusa" já em edilidades anteriores e devia continuar, utilizando a sua pujança física até conseguir uma licenciatura, especializando-se em arquivo e documentação. Nunca pensou, tanto quanto me pude aperceber, em trabalhar a sério, aprender a sério ou pensar a sério. Apostava tudo na sua capacidade de manipulação da apresentação corporal, exibição controlada das partes mais sensuais e melhoradas da sua anatomia, prometendo muito e dando quase nada, excepto quando era mesmo inevitável. Conseguiu tudo o que desejou, até a criação de lugar e respectivo concurso público, adaptado à sua pessoa e a mais ninguém.
Mas temos de voltar à menina Amélia, já não tão menina como isso, e à sua morte por assassinato literário e exéquias solenes para o cemitério da terra.
Já disse, que tudo com a Amélia não passou de um equívoco. Um affaire como todos sabemos tem os seus tempos próprios, um cerimonial, um calendário que deve ser escrupulosamente cumprido, para não permitir que a mulher nos julgue apaixonados e saiba claramente que o que importa é a novidade, o lúdico, o prazer se for caso disso e mais nada.
Normalmente o tempo decorrido desde a primeira troca de palavras até à consumação tem de ser rápido, para não deixar qualquer réstia de dúvidas sobre as verdadeiras causas do interesse.
Naquele tempo estava de ressaca de uma escabiose e não me convinha expor o meu corpo ou os órgãos sexuais onde ainda havia vestígios de pequeníssimas crostas já curadas. Assim, as conversas, os beijos, os amassos, foram-se prolongando com passeios, viagens, ocasionais almoços, pequenos lanches nas pastelarias das redondezas e nada de me desnudar a mim ou a ela, nada que apontasse que o caminho fosse sexo puro e duro.
Claro que isto trouxe-me a falsa aparência de homem sério, honesto, presumivelmente procurando uma parceira fixa e lixei-me, a rapariguinha convenceu-se que aquilo era mesmo um namoro.
Estive muitos anos sem saber nada dela depois do rompimento bastante intempestivo. E espantei-me quando vi, num dos locais de anúncio de falecimentos e funerais, espalhados por alguns locais da terra, o nome e o retrato da senhora. Fez-me pena mas não me comoveu.

(A continuar se me der na veneta...)

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