Blogue do Doce Veneno

Monday, July 07, 2014

A Menina do Rosto Cor de Porcelana.

Fernand Léger, Femme en Bleu, 1912
Vi hoje, quando estava a arrumar o carro próximo do hospital, a menina a quem eu chamava rosto de porcelana. A Menina do Rosto Cor de Porcelana que já não é menina nem o seu rosto tem o aspecto luminoso da porcelana, foi minha aluna, há mais de trinta anos, durante dois anos lectivos em que leccionei, à noite, um grupo de jovens, que frequentaram o 5.º e o 6.º anos de escolaridade, naquela altura ainda o 1.º e 2.º anos, do 2.º Ciclo do Ensino Básico. Tinha vinte anos e destacava-se no grupo, não só pela beleza mas também pela maturidade moral e intelectual que revelava. Ao vê-la, agora, tão diferente mas ainda estruturalmente tão igual, obrigou-me a pensar nos estragos ou modificações que os anos exercem sobre nós. Não me reconheceu e eu propositadamente olhei-a mas não me apresentei. Tenho experiências recentes e dolorosas de alunas que encontrei ao fim de muitos anos de ausência e cujo  reatar de amizade,  pelo Facebook e na vida real,  se revelou catastrófico.
Não lhe falei, portanto, mas não tive dúvidas que era ela porque estava acompanhada pelos pais, camponeses a poucos quilómetros de Pombal, com os quais falei muitas vezes, nos dois anos em que ela e a irmã foram minhas alunas.
Sentei-me dentro do carro, onde coloquei a senha do estacionamento e fiquei a olhá-la e a pensar. Ela deixou os pais no passeio junto ao muro do hospital e atravessou a rua para colocar uns volumes no banco traseiro de um automóvel estacionado no outro sentido da faixa de rodagem. Pude apreciá-la durante uns minutos. Estruturalmente estava lá tudo. Alta, direita, elegante, vestida de azul azul, o rosto voluntarioso e bonito. O cabelo negro,  como sempre atado atrás como se fosse o rabo de um cavalo. Os ombros estreitos, a anca larga, a cintura apertada, as pernas longas e torneadas. Uns sapatos pretos vulgaríssimos, de meio salto, sapatos de trazer com se costuma chamar. Havia uma discreta sensualidade nos seus gestos e movimentos, nada de espampanante. Desde os longínquos anos oitenta, o rosto escureceu, tem uma cor trigueira como se há muito tempo estivesse ao sol e aquela cor leitosa, rosada como o aljôfar,  perdida eternamente. Tem rugas de expressão em todo a cara e uma cor de coiro curtido que não a favorece nada. Foi nisto que ela se transformou. (Ainda bem que não me reconheceu, as marcas do tempo no meu corpo iriam desencantá-la ainda mais a ela.) Os glúteos parecem-me firmes e ondulam suavemente enquanto caminha. Gostei de a ver. Já não é, mas continua a ser, a minha menina da cara de porcelana.